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Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise 🔍
Paidós, 1, 2020
Alexandre Coimbra Amaral 🔍
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Cartas de um terapeuta para os seus momentos de crise
APRESENTAÇÃO
I. A CARTA SOBRE AS CARTAS
Oi, tudo bem? Muito prazer, eu sou Alexandre Coimbra Amaral, muito provavelmente não conheço você e a sua história, mas ainda assim lhe convido para fazer deste livro uma experiência similar a uma boa roda de conversa. Imagine que estamos num lugar que lhe faça sentido, do jeito que você gosta. Eu, como bom mineiro com cheiro de sertão, gosto de café, pão de queijo e música que faz a alma cantar. Sempre me imagino numa cadeira ou no chão de uma varanda, com vista para algum pedaço de natureza viva, na alegria de poder encontrar alguém para falar da vida, de forma profunda e delicada. Depois que você terminar de ler este livro, poderá me dizer se consegui fazer dele uma forma de puxar dois dedos de prosa sobre o sofrimento humano, sem abrir mão da profundidade, e sempre de mãos dadas com a delicadeza. Trago em mim a delicadeza como uma espécie de abre-alas da vida, como o jeito que eu quero me expressar, como uma criança que aponta para a lua cheia sem medo de que lhe cresça verruga na mão. Ser delicado é sim parte de um mundo masculino possível, não violento e cheio de esperança. A delicadeza pode ser uma forma de conversar sobre o sofrimento, sem que a dor seja ainda maior. Falar sobre o que faz sofrer é parte da experiência de colocar esse sofrimento num lugar menos árido e mais esperançoso. Para isso, a delicadeza merece ser o tapete vermelho, sobre o qual podem repousar as histórias de uma vida inteira. Como numa varanda, com café e pão de queijo. Sim, este livro é como uma conversa na varanda. E com os olhos nos olhos, com os silêncios que se fazem cada vez mais raros no encontro entre as pessoas. Para uma história poder cumprir o seu destino de tocar a alma humana, para ela poder ser narrada e transformar quem conta e quem escuta, é necessário silêncio. Não interromper o fluxo da emoção de quem conta, já que provavelmente a pessoa passou muito tempo com aquela história engasgada, sem conseguir um interlocutor que se dispusesse a escutá-la. Sinto que cada vez temos menos tempo, espaço, paciência e disponibilidade para escutar as histórias que fazem as pessoas sofrerem. A vida acelerada nos faz responder com um coração nas redes sociais, a um texto enorme e cheio de lágrimas escondidas entre as letras impressas bem desenhadas. As pessoas continuam com muita necessidade de contar o que sentem, como vivem, suas perguntas sobre a existência para as quais não conseguem encontrar respostas. E nós aprendemos a escutar a dor do outro com palavras fáceis, com receitas de bolo em forma de comportamento: “vai passar”, “Deus quis assim”, “é um processo mesmo”. Fico me perguntando o quanto essa tentativa de consolar a pessoa representa uma impaciência nossa em escutar verdadeiramente uma história, e permitir sermos tocados por ela. Então eu te convido a passar um tempo aqui comigo, abordando histórias de gente como a gente: que quer ser o melhor para o mundo e consegue ser apenas o possível, que insiste em tentar e cansa por vezes, que desiste e depois desiste de desistir. A vida é um eterno mirar na Lua para acertar nas estrelas. Não somos o que sonhávamos ser, porque sempre somos uma fração do que imaginávamos. E isso não significa uma existência menor, mas aquela única em que podemos fazer os dias acontecerem. Nós sofremos. E existem formas para que essas histórias de dor ganhem algum sentido, e aí possam descansar em nós, ainda que a resposta definitiva para elas não tenha chegado. O convite para conversar surge desta ideia: somos pessoas que sofrem de formas muito diferentes porque somos marcados por uma impressão digital que nos faz únicos no jeito de viver. Mas os temas dessas dores parecem ser compartilhados por muitos de nós, e é isso o que faz com que as rodas de conversa sejam parte de todo o ciclo da vida. As crianças conversam e brincam juntas, os adolescentes fazem das tribos a grande cola identitária dessa fase. Os adultos se misturam em turmas do trabalho, da família, dos amigos de escola, dos vizinhos. Eu só acredito em uma vida vivida coletivamente, em que haja a possibilidade de escutar o que o outro sente vontade de dizer sobre si. Nessa mistura de histórias, vamos compreendendo melhor o que é viver. Os desafios são semelhantes, às histórias de como os experimentamos é que são absolutamente únicas. Neste livro, vamos conversar sobre muitos desafios da vida. Pode ser que você tenha vivido um ou vários deles, ou que haja gente por perto que entenda, na pele, o que os textos vão abordar. As cartas são a forma que eu escolhi para desenvolver a conversa com você. Há tempos que não recebe cartas, não é verdade? Eu sou de um lugar e de um tempo em que cartas eram parte da aventura de se lidar com a saudade. Amigos se fizeram e se mantiveram por meio de cartas, enquanto o esperado encontro presencial não acontecia. A carta era uma forma de antecipar o entusiasmo do coração em encontrar gente amada. Depois da revolução da internet, essa prática foi deixando de existir progressivamente. O e-mail veio a ser o substituto impresso nas telas, sem que pudéssemos conhecer a letra de quem nos escreve. E cada vez mais o texto das histórias vai ficando mais curto, mais conciso e com menos esperança de ser lido. É hora de recuperar a potência de ser remetente ou destinatário de cartas que abraçam sem medo; cartas sem vergonha de expressarem o amor, a dúvida, as emoções mais secretas e as histórias mais silenciadas. É hora de fazer das cartas uma contracultura do afeto e da esperança na capacidade de sermos solidários. Aqui, eu lhe escrevi várias cartas, sempre pensando que você está vivendo um dilema que ainda se apresenta como uma pergunta sem resposta. A ideia das cartas jamais será a de lhe entregar respostas, porque eu não acredito nisso. Sou um psicólogo, terapeuta familiar, de casais e de grupos. Isso significa que passo os meus dias conversando com muita gente sobre os conflitos humanos que deixam um rastro de sofrimento, fazem aumentar a angústia e tantas vezes são mantidos em segredo por muito tempo. O papel de um psicólogo não é direcionar a vida de alguém, mas o de ajudar a ver o problema de forma diferente. Quando um psicólogo apresenta a saída do túnel, está contribuindo para que esse alguém se sinta incapaz de fazer a travessia com seus próprios pés. Nós, psicólogos, acreditamos infinitamente na capacidade do ser humano em construir as saídas para os seus labirintos. E jamais sabemos o que é melhor para uma pessoa, já que o maior segredo da vida é descobrir como vivê-la com autenticidade, da forma que mais faz sentido para quem vive. Estas cartas são o início de uma conversa que eu quero ter com você, na varanda da sua vida. Todas as vezes que elas parecerem falar com você, e que se sentir tocado, pare e tome nota. Converse com você, permita-se fazer novas perguntas sobre os velhos problemas. Presenteie-se com o silêncio que ajuda a sentir a vida de outra forma. E, depois, volte, leia mais um pouco, até quando quiser parar. Você tem a escolha de ler as cartas em qualquer ordem, ou apenas aquelas cujos temas dialogarem com a sua história. Sei que você não está no meu consultório, e nem essa é a ideia. As cartas deste livro jamais terão a pretensão de substituir uma boa terapia. Mas elas podem ser o início da sua fala na próxima sessão. Ou um chamado para uma conversa com alguém que você ama, para contar algo seu ou para acolher alguém com quem você se preocupe. E, se no final quiser me escrever uma carta, eu vou adorar recebê-la. Não precisa ser impressa, não precisa ser escrita à mão, não precisa ter um formato específico. Vinda de você, falando de você e da sua história, a carta ganha importância, merecerá ser lida e respondida. Este não é um livro para simplesmente ser lido, ele é uma vontade de ser uma conversa para além destas páginas. Uma carta é sempre uma promessa de futuro, um abraço que ainda acontecerá em alguma esquina da vida. Há muito tempo eu não escrevia uma carta para alguém, e sou tomado de uma alegria enorme ao me ver aqui, escrevendo esta carta para você. Um abraço para quem for de abraço, um beijo para quem for de beijo. A gente se encontra nas próximas páginas. Até sempre!
Alexandre.
II. HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ NÃO RECEBE UMA CARTA?
Josué, Faz muito tempo que eu não mando uma carta pra alguém. Agora eu tô mandando esta carta pra você. Você tem razão. Seu pai ainda vai aparecer e, com certeza, ele é tudo aquilo que você diz que ele é. Eu lembro do meu pai me levando na locomotiva que ele dirigia. Ele deixou eu, uma menininha, dar o apito do trem a viagem inteira. Quando você estiver cruzando as estradas no seu caminhão enorme, espero que você lembre que fui eu a primeira pessoa a te fazer botar a mão no volante. Também vai ser melhor pra você ficar aí com seus irmãos. Você merece muito muito mais do que eu tenho pra te dar. No dia que você quiser lembrar de mim, dá uma olhada no retratinho que a gente tirou junto. Eu digo isso porque tenho medo que um dia você também me esqueça. Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo.
Dora.
Essa é a carta escrita pela personagem Dora – a criação magistral de Fernanda Montenegro no filme Central do Brasil – ao Josué – o garoto que Vinícius de Oli- veira trouxe ao mundo para ser a metáfora da busca universal pelo pai, e parte da história encantada daquele filme que falava do poder que existe em cada carta escrita. Assisti a esse filme dezenas de vezes – só no cinema foram umas quatro. Eu via ali algo de muito universal, um mito que se atualizava, uma história sobre as histórias, na metalinguagem mais poética que eu tinha conhecido até então sobre a comunicação entre corações apartados por quilômetros, separações e saudades. Desde Central do Brasil, o tema das cartas nunca mais me abandonou. O filme de Walter Salles me ensinou tanto, que meu inconsciente buscou formas de se expressar por escrito, na profissão mais oral que conheço. Eu tinha me formado para ser terapeuta: primeiramente fui atender crianças, depois me interessei pelos adultos e, finalmente, pelas famílias e casais. Descobri que, entre terapeutas familiares, havia alguns, menos ortodoxos, que gostavam de escrever cartas depois do final das sessões. Era uma forma de deixar as mensagens para serem relidas por todos os membros do grupo familiar sempre que necessário, no sagrado espaço entre as sessões. As cartas eram como uma licença poética para poderem voltar ao tema, para vencerem o medo de enfrentar o problema que lhes trazia ao consultório. Passei a escrever cartas, também, para aquela pessoa da família que jamais se interessaram pelo processo terapêutico: fazia do papel escrito à mão uma ponte para que ela me escrevesse de volta, caso tivesse vontade, para marcar com alguma presença a sua versão da história. Havia cartas de despedida de todo um processo, cartas depois de algum tempo do final para entender como estavam aquelas pessoas; cartas e mais cartas. Não era recurso habitual, é verdade. Mas quando ele existia, quando eu lançava mão da possibilidade de escrever para meus pacientes, sentia que o coração do terapeuta se expressava com calma, porque rima com alma mesmo. E o melhor – era um recurso terapêutico muito eficaz, que conectava as pessoas à terapia ou à mensagem que ali se expressava. A carta tinha mesmo a capacidade de ser uma brisa que triunfava sobre a resistência das pessoas em falarem sobre suas dores. Hoje, mais de duas décadas depois daquele filme mágico, as cartas voltam a povoar meu imaginário. Agora elas têm outro formato. Somos como Dora, ou como Josué; há muito tempo não escrevemos cartas para ninguém, e ninguém nos envia cartas de próprio punho. Os bilhetes de outrora, anotados na cadernetinha ao lado do telefone fixo no canto da sala, se transformaram em comentários telegráficos nas redes sociais. Não temos mais tempo para o tempo de uma carta, que se expressa sem pressa. A carta não quer acelerar nada, ela quer é mesmo parar o tempo. Neste mundo de velocidade adoecedora da vida, cartas podem ser escritas para que as pessoas entrem num parênteses e as leiam, sem pressa. Ainda sou escrevedor de cartas, muito prazer. Aprecio o itinerário que elas fazem: saem de um silêncio de vários momentos (às vezes não são escritas de uma só vez), os sentimentos vão fluindo e permitindo serem narrados por quem empunha a caneta em mãos. Hoje estou escrevendo muitas cartas para você. O mais diferente dessas cartas é que elas podem não ser exatamente para você, mas eu adoraria que pu- desse ler cada uma delas como se assim fossem. Escrevi cartas para destinatários sensíveis, afeitos a deixar as vozes internas falarem em sonhos, em terapias, em silêncios, em músicas e danças. Sei que você é assim, mesmo que sua vida atual não lhe permita mostrar. Há em você uma pessoa desejosa de receber uma carta com as folhas dobradas e que se surpreenda com seu conteúdo. Aqui vamos viver isto: um livro de cartas, que contém conversas que poderiam acontecer dentro de um consultório de psicoterapia de qualquer tipo. Nelas, procuro tratar de dilemas que incomodam, mobilizam, bloqueiam, fazem sofrer ou são desafios maiúsculos para você ou para alguém próximo. Se não quiser ler sobre algum dos temas, fique à vontade. Eu sou um defensor apaixonado da autonomia, do nosso direito de escrever a própria vida com as mãos que temos, e não obedecendo às imposições das mãos de alguém. Leia como quiser, quantas vezes quiser. Você pode lê-las para entrar mais em conexão empática com quem vive uma determinada dor, por exemplo; é muito belo podermos sentir que somos aprendizes em todos os tem- pos da vida, e que, inclusive, colocar-se no lugar do outro é uma matéria que nunca seremos capazes de aprender completamente. Você pode ler a carta como se fosse para você, numa parte de sua vida que já não existe mais, ou numa his- tória que ainda está por vir. Quando as palavras ganham o mundo, elas deixam de pertencer a quem as escreve. As cartas terapêuticas deste livro, a partir de agora, são suas. Ao final, se você quiser me escrever de volta, estarei como Josué, com olhos marejados, aguardando que o irmão que acabara de conhecer (personagem de Matheus Nachtergaele, aquele colosso de ator) lesse a carta da mãe para o pai. Volte ao Central do Brasil e veja os olhos de Josué naquela cena, e imagine que eu estarei daquela forma. Aguardando, com o coração vivo, a sua manifestação, qual- quer que ela seja. Conte-me como você recebeu estas linhas, e perdoe-me pela estranheza de querer escrever-lhe cartas. Já viu, sou do século passado, e há muito tempo não escrevo uma carta para alguém.
III. UM LIVRO SOBRE MOMENTOS DE CRISE?
Eu sei que você pode ter aberto este livro com algum interesse, mas também com alguma dúvida sobre o real objetivo, alcance e limitação. É importante estabelecer aqui alguns parâmetros para que você se sinta confortável ao lê-lo. Desde o final do século XX, inúmeros livros de autoajuda entraram no mercado editorial com fórmulas detalhadas do que uma determinada cultura (a norte-americana, sobretudo) decidiu nomear como “sucesso”. Parecia haver um caminho para essa realização suprema, que diferenciava quem era vencedor de quem jamais subiria no pódio da vida. É preciso que você saiba: eu desacredito fortemente disso tudo. Essa forma de nomear a vida, seus desafios e suas vitórias parece-me simplista e, sobretudo, um samba de uma nota só. Pensar o sucesso como uma fórmula é um total desmerecimento da capacidade do ser humano em ser múltiplo, em querer fazer de sua história algo diferente de qualquer fórmula. Sou a favor da inexistência de um conceito fechado para esta palavra “sucesso”, inclusive porque ela oculta um significado bastante sombrio e, pior, definitivo para a autoimagem, da palavra “fracasso”. Não há uma vida de sucesso ou fracasso. Todas as vidas humanas são marcadas por momentos de maior ou menor satisfação, sentimento de autoeficácia, encontro consigo e com os outros, pertencimento, vontade de ser único, vontade de ser parte de um coletivo, vazios, ilusão de ter chegado finalmente ao topo da montanha, vontade de ter outra vida completamente diferente da que se escolheu até então, surpresas agradáveis ou bastante indigestas. E poderíamos preencher essa lista com um sem-número de cenas que compõem um mosaico pouco simétrico sobre os conceitos de sucesso ou fracasso. Ora, se a linha do tempo de qualquer um de nós está marcada por tantos sobressaltos, pode ser bem melhor sentir que esses conceitos fixos, rígidos e absolutistas, como "sucesso" e “felicidade”, são invenções que criamos. Perceba que eu, inclusive, coloco essas palavras entre aspas, de propósito, como títulos de uma ficção. Eu só trabalho com modelos de funcionamento humano que se proponham inclusive. Minha afiliação profissional é fazer parte de um grupo de profissionais (psicólogos) que, no Brasil, exercem a sua atividade sempre no intuito de incluir o que está do lado de fora. Nós somos os escutadores profissionais que convidam as pessoas a trazer para dentro de uma fala nova aquilo que é negado, oculto inclusive de si mesmo, na consciência. Mas também daquilo que a sua cultura familiar, organizacional, escolar ou religiosa não permite que seja expresso ou vivido. Também somos afeitos a trazer pessoas que se sentem excluídas para o lado de dentro da vida, da sociedade e do coração de quem já se sente pertencente. Enquanto houver alguém se sentindo do lado de fora, há um chamado contínuo para que abracemos essa exclusão e a tragamos para o lado de dentro. O respeito à diferença humana é o principal norteador do senso de justiça. O direito a que todos possam se sentir únicos, livres para pagar o preço de ser o que se escolhe ser, é uma pedra fundamental desta existência complexa e sem receitas. Inclusive, temos o direito inalienável de, ao sentirmos que as escolhas nos levaram a um desvario, que elas possam ser refeitas, que haja a possibilidade de retorno a uma sensação de bem-estar consigo e com a vida que se leva. Portanto, não há “sucesso” ou “fra- casso”. Há momentos em que nos sentimos melhores ou piores, e tantas vezes com a necessidade de conversar, e muito, para compreender o que há de errado. Muito comum é sentir que há algo funcionando mal em alguma dimensão da vida, mas as palavras ainda não surgiram para nomear claramente o que vivemos. Há um alento sublime quando a palavra finalmente chega para dar forma ao que antes era apenas uma sensação. A palavra é a moldura das experiências humanas. Por meio dela, colocamos nome e adjetivo àquilo que vivemos. E há muito mais pala- vras para representar o que vivemos, para além de “sucesso” e “fracasso”. Neste livro, uso a palavra “crise” como um convite à existência possível. Na próxima carta, trato de explicá-la com mais ênfase. Mas quero salientar que este livro é uma experiência de revisita às circunstâncias da vida de todos nós, que nos provocam dores, dilemas, sentimentos estranhos, e, acima de tudo, a sensação de desadaptação. Não são poucas as cenas em que nos sentimos assim, sejamos honestos. O desenvolvimento humano é uma linha cheia de curvas, encruzilhadas, acidentes de percurso e encontros inesperados que testam as nossas coronárias em sua capacidade de resiliência. Do nascer ao morrer, somos levados a escolher, a desenvolver habilidades novas, a aceitar perdas, a lidar com o inesperado, a crescer, a não conseguir reter momentos e pessoas que se vão. A angústia é a amálgama dessas situações. Ela gera perguntas que demoram a encontrar sequer um esboço de resposta temporária. E nossa grandeza e envergadura vai sendo composta justamente aí. Não há mistério insondável, não há receita infalível. Viver é um conjunto de outonos da alma e de sobressaltos seguidos de gargalhadas e lágrimas. Tudo ao mesmo tempo, agora. Para que, quiçá, possamos fazer dessas perguntas sem resposta definitiva alguma promessa de futuro. E, nesse tom, este livro foi pensado para ser uma conversa ativa e constante com esta sua condição: “você não está só”. Somos todos caminhantes silenciosos e reflexivos sobre o que devemos fazer, que decisão melhor podemos tomar, como reparar uma grande falha, a quem recorrer em momentos difíceis, o que revelar do que sentimos, como levar uma vida mais autêntica. As lacunas de sentido da vida também fazem parte dessa jornada. Uma vida é um tempo longo demais para ser previsível e para realizar-nos a todo instante. A perda de sentido pode aparecer como uma dessas perguntas que não querem calar. Por mais grave que seja o momento, não há pergunta que não possa ser feita – e aí está a grande beleza da capacidade humana de resistir aos terremotos dos dias. Antes de querer respostas, talvez sejamos mais úteis aos nossos dilemas se conseguirmos propor perguntas que ampliem o olhar para o problema. Perguntar é não ter certezas. Perguntar é se assumir incompleto, falho, passível de reescrever a vida. Perguntar é a grande saída de uma crise. As cartas que lhe escrevo ao longo das próximas páginas são um convite à abertura do seu coração para fazer novas perguntas. As crises chegam para suscitar raivas que estavam escondidas detrás de uma pretensa adequação a tudo, para fazer chorar as tristezas que não podiam ser expressas, para assumir os medos que são muito mais do que aquilo que os pretensamente fortes e equilibrados teimam em nomear como “receios”. As crises são a mobilização que faltava, e que trazem um futuro estranho, em que podemos até agradecer por elas terem vindo nos visitar sem aviso prévio. Elas nos chacoalham, destroem os castelos que tínhamos construídos como símbolos da ilusão de certeza e controle. As crises nos relembram a falência e a finitude, e, por isso mesmo, o quanto podemos ser verdadeiros inventores de vidas numa mesma vida. Não há limites para a capacidade humana de se refazer. Antes de passarmos pelas crises, não sabemos que seremos tão grandiosos a ponto de construir uma saída possível para o desafio que elas nos apresentam. Este livro não é uma resposta. Ele traz apontamentos, sugestões, levanta possibilidades que podem ou não fazer sentido pra você. É você quem decidirá se as linhas que lhe escrevo são úteis ou não. E, no seu exercício soberano de autonomia, você poderá fazer desta leitura mais um elemento para refletir sobre dilemas que lhe atravessam. Eu não sou portador de nenhuma verdade, até porque você já entendeu que não acredito nelas. Sou o defensor interminável da verdade de cada um ser construída, vivida e celebrada na convivência humana. O convite dessas cartas é de ser mais um instrumento de diálogo com você. O que pode, inclusive, mostrar que você precisa de uma ajuda profissional para fechar um ciclo pendente, para dar encaminhamento a um dilema importante, para resgatar perguntas que ficaram pra trás, para ter o alento de ser escutado por alguém que não lhe oferte uma saída simplista nem um conforto amigo que lhe esconda o lado sombrio das suas escolhas. Se este livro for insuficiente a ponto de você procurar o apoio de um profissional da psicologia, psicanálise ou psiquiatria, ele terá cumprido a melhor das suas finalidades. Eu acredito na necessidade de sermos escutados, como ponte possível para abismos do existir que por vezes encontramos pela frente. As cartas são escritas de forma independente, e você pode lê-las na sequência que melhor lhe parecer adequado ao seu momento. Inclusive pode ser que algum tema das cartas não lhe chame a atenção a princípio, mas a leitura final lhe deixe perguntas muito úteis. Não há regras para a leitura deste livro, a não ser um pedido de que você não o leia como um receituário. A vida não é um formulário a ser preenchido. Os vazios de sentido são as gravidezes das novas fases, dos ciclos que nem sequer sonhamos em viver. Tudo é parte. Nada fica de fora. Não há sucesso nem fracasso, apenas vida possível e aprendizado contínuo. Somos caminhantes que escrevem cartas para o futuro, na intenção de termos respostas do tempo. E eis que o tempo nos diz, como um oráculo, que a resposta sempre esteve do lado de dentro da mesma pergunta. Por isso, acredito que viver é conversar, o diálogo é a saída, a prévia do desatar dos nós. Conversar consigo, então, é o diálogo talvez mais frutífero da jornada inteira. Eu uso, neste livro, um instrumento que eu aprendi com dois mestres da Terapia Narrativa, uma das minhas formações terapêuticas ao longo destes mais de vinte anos trabalhando como terapeuta familiar, de casais, indivíduos e grupos. Michael White (um gigante como terapeuta, infelizmente falecido precocemente) e David Epston, vindos da Austrália e da Nova Zelândia, respectivamente, criaram um modelo de conversa terapêutica muito singular, poético e acessível. Espalhou-se no mundo inteiro como as melhores mensagens de paz, trazendo esperança para as histórias humanas mais dilacerantes. A Terapia Narrativa é um modo de conversar sobre as dores da vida, trazendo os problemas para conversarem conosco. Pode parecer um pouco abstrato ou estranho demais, mas a ideia é que tratamos os nossos problemas como se estivessem colados à nossa identidade. Quando digo “eu sou ansioso”, estou trazendo a ansiedade para uma espécie de morada definitiva. Nessa expressão, há a sensação de que estamos entregando os pontos, que a ansiedade venceu o jogo. E o que a vida quer de nós é coragem, como diz Guimarães Rosa. Michael e David sorriem para nós como terapeutas, e nos tocam em nossa coragem para ousar contar a história com um tom inédito. O que aconteceria se pudéssemos conversar com o nosso problema? O que a ansiedade nos diria? Em que situações ela chega mais fortemente, invadindo a minha existência? E em que outras cenas eu consigo ser mais forte do que ela, e pareço outra pessoa, muito diferente daquela “ansiosa” a que me refiro sempre? Foi assim que pensei estas cartas: você vai conversar com o medo, com a raiva, com a tristeza, com o ciúme, e assim por diante. Essas características humanas são aqui as escritoras das cartas, estão vivas na vida de cada um de nós, e por isso nos conhecem bem. Elas vão nos dizer como somos, o que sentimos quando elas chegam, e sempre nos deixam alguma mensagem esperançosa. Como eu sou o autor das cartas, não poderia deixar de ser assim. Eu sou testemunha, escutando tantas histórias de tanta gente valiosa vida afora, de que a desesperança é temporária, e o diálogo é capaz de trazer alternativas que nutram o coração de energia. Aprendi, com cada paciente que atendi (e foram centenas deles), que somos sempre surpreendidos pela imensa criatividade e capacidade humana de fazer a vida acontecer, apesar e além dos sofrimentos inevitáveis, fazendo acontecer o que tantos chamam de milagre. Um terapeuta é testemunha dos milagres que fazemos acontecer em nossos dias, das insistências que constroem vidas novas, das decisões imperfeitas e dos tropeços inevitáveis que nos transformam em outros. Você perceberá que as cartas estão escritas para um “você” sempre feminino. Isso não é aleatório, mas não quer dizer que eu escrevo essas cartas para serem lidas apenas por mulheres. A interlocutora é a alma de quem lê. E a alma se conjuga no feminino. Também no feminino se conjugam as revoluções de comportamento que os séculos vêm trazendo como História. As mulheres contêm em si o elemento mais fecundo da transformação. Neste século XXI, elas (sobretudo as mulheres negras) têm ensinado aos homens sobre as injustiças construídas nas sociedades do mundo inteiro. Elas estão ocupando espaços, enfrentando tabus, quebrando assimetrias e construindo um outro panorama de convivência entre os gêneros. Desejo que os homens possam ler um livro escrito para uma interlocutora, e ainda assim consigam se identificar com o diálogo que lhes proponho. Isso pode ser um pequeno ato de desconstrução, uma metáfora para estes tempos. Precisamos sair do cenário sempre protagonizado pelos homens, beneficiando-nos de um lugar de escuta para quem merece ocupar novos lugares de fala. Escutemos a fala para uma mulher, para o nosso lado femi- nino, para o desejo de transmutação das feridas que sempre nos fizeram menores. A alma do mundo é uma mulher. As cartas terapêuticas para momentos de crise são mais um fluxo de conversação, entre tantos outros, sobre aquilo que ainda não aparece como resposta no seu horizonte. Como são cartas, podem ser respondidas. Se em algum momento você quiser me escrever, sinta-se à vontade. Eu sempre adorei receber cartas. Em meu cotidiano como psicólogo, sinto que as histórias humanas são cartas endereçadas a mim, para que eu as leia com atenção e empatia. A todo momento eu recebo estas “cartas faladas” em forma de histórias no consultório, nas con- versas com as plateias nas palestras, como parte do meu trabalho no programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo. A sua história me interessa. Todas as histórias têm a capacidade de fazer-nos aprender sobre a grandiosidade da experiência humana. Se você quiser me ensinar sobre a sua, serei um leitor aprendiz da carta que você, gentilmente, quiser me escrever. As crises são parte do tecido que une todas as histórias – e, por isso, são um motivo a mais para nos sentirmos próximos e semelhantes. Momentos de crise são, neste livro, o motivo de um abraço que nunca se encerra, como acalento da angústia que existirá, como parte da aventura de voltar a despertar para um novo dia.
IV. CRISE É COISA DE GENTE FRACA?
Uma das maiores metas da existência humana ocidental é a independência. Uma palavra tão proferida, tantas vezes de forma acrítica. Reflitamos sobre ela. O que você deve imaginar por independência (e já ter pensado assim): chegar ao momento em que quem mandará em sua vida é você, e que as pessoas a quem você devia algum nível de satisfação deixam de ter o direito de interferir no rumo de suas escolhas. Há toda uma ideia mítica sobre o momento em que essa independência acontece (por exemplo, quando se atinge a capacidade de arcar com as contas, ou quando se muda d
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Editora Planeta do Brasil
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Brazil, Brazil
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2022-08-30
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